terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

RELATO


Nasci dia 31 de Dezembro de 1965, estou com 46 anos, e sou a prova viva de alguém que tem como conviver com a epilepsia de forma leve e feliz.

Este problema se desenvolveu  em 2 ou 3 fases da minha vida, mas minha história é longa e se tornou normal.

Aos 02 (dois) anos de idade, por volta de 1968,  tive uma febre que originou a 1ª crise convulsiva, e com todo o preconceito da  época, nunca me foi explicado se houve ou não mais crises depois desta, por minha mãe sentir-se culpada pelo ocorrido. Sei que aos 8 anos eu já estava tomando o famoso Gardenal e meu pediatra, o já falecido Dr. Waldir Fares, de  Orlândia, cidade também do interior do estado de São Paulo, tomou a iniciativa de fazer um EEG para a retirada do medicamento, pois acreditava que o tal  FOCO ou Disrritimia Cerebral, palavras indevidas usadas na época, poderia ter sido curada. E foi o que fizemos, e aos 10 anos já estava completamente livre dos medicamentos, mas continuava com a proteção exagerada de meus pais, sem poder ao menos  praticar educação física no colégio que era uma grande vontade, pois achava lindo o uniforme e queria aprender a jogar vôlei, mas isso não era possível, e a única coisa que consegui foi aprender a nadar para não correr outros tipos de riscos.

Aos 12 anos fiquei ”mocinha”, como se dizia, o que nos dias de hoje seria menstruada pela 1ª vez, e senti todo o meu corpo se modificar, apesar de sempre ter sido muito magra na infância e adolescência toda também. Dois meses depois acordei no meio da manhã,  na minha cama, com minha irmã chorando muito e a secretária que cuidava de nós também, como se estivessem me velando. Ela só perguntava se eu estava bem e que nossos pais já estavam voltando de Franca. Eu também chorava muito, sem saber porque, meu corpo doía, um enjôo de estomago horrível e levantar, nem pensar, tinha alguns machucados no corpo, um “galo” na cabeça e minha boca por dentro toda mordida e ferida. Foi horrível! Com a chegada dos meus pais começou então uma sucessiva visita a neurologistas, mas sem sucesso algum. As crises vinham de tempos em tempos, não sabendo precisar quando, e a volta se tornava cada vez mais dolorosa, porque já entendia e me doía o corpo, a alma e o coração. Foi então que encontramos um médico na cidade de Ribeirão Preto, que me reservo o direito de não dizer seu nome, e também não tenho autorização para tal, e ele solicitou mais um EEG e uma TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA, coisa que nunca tínhamos ouvido falar, mas em Ribeirão Preto  já existia um dos poucos aparelhos do país e naquela época, não havia planos de saúde. O exame foi terrível para uma menina de 14 anos, sem noção do que acontecia, e foi aplicado um liquido, acho que ” iodo”, que me gelou e esquentou todo o corpo e não permitia me mover. A suspeita do tal profissional da saúde era que eu pudesse ter um Tumor no Cérebro por conta de minhas crises não pararem, mesmo sendo espaçadas. Graças a Deus não foi constatado absolutamente mais nada do que já sabíamos, então um tio médico cardiologista da cidade de São Paulo, Dr. Clemente de Lollo Filho, me encaminhou para o então famoso Neurocirurgião Dr. Darcy Freitas Veluttini. Chegando lá, ele me pediu  um exame para a retirada de um liquor no pescoço e então o diagnostico foi NEUROCISTICERCOSE, o tão conhecido ovo de solitária. Todos nós assustamos, mas ficou constatado que são 5 (cinco),  todos calcificados e em  diferentes pontos  do cérebro. Aí se deu a  época da revolta:

Passei a não me aceitar, pois, morava em Atibaia, uma cidade fria,  já estava com 15 anos e tinha sido proibida de: tomar chá, coca-cola, café, bebida alcoólica (nem o cheiro), comidas que continham bebidas ou licores também eram proibidas, não podia praticar educação física, quando fosse nadar teria que levar uma amiga ou irmã que soubesse do problema para me observar,  nem ter muito esforço físico, dormir 8 horas por dia e me alimentar muito bem. Eu estava conhecendo o mundo, descobrindo a vida, como poderia conviver com os rapazes e garotas da época assim?... Como contar?... Como ser aceita?... Como namorar alguém e correr o risco de ter uma crise em qualquer lugar a qualquer hora?... Porque tem tem isso ou toma "remédio para a cabeça" é considerado louco ou coisa parecida. Vieram as indagações e as revoltas... a vontade de jogar tudo para cima, ou melhor, todos os remédios no lixo para ver no que iria dar. Chorava muito e não sabia as vezes porque, ou até sabia,  mesmo porque fazia terapia desde os 12 anos, mas não queria aceitar as diferenças.

Neste período tive dois momentos engraçados, pelo menos hoje dou risadas e dois muito difíceis de enfrentar no dia seguinte. Morava em Atibaia, e como estão vendo foram crises estaduais, nunca nos mesmos lugares, afinal meu pai era bancário, então, eu sai do banheiro depois de um banho quente enrolada na toalha e ao abrir a porta do guarda roupa para pegar algo para vestir fui parar dentro dele e quando acordei estava toda machucada, inclusive o rosto, mas nada grave e destas duas crises hoje dou risadas. As outras, ainda morava em Barretos SP e uma foi na sala de aula em plena prova, não me lembro a matéria, lembro que acordei deitada em um monte de cadeiras e meus amigos de sala choravam sem parar, afinal tínhamos apenas 13 anos. A outra foi aos 14 anos, também em Barretos,  estava indo para o clube à noite e quando virei a esquina caí. A única coisa parcialmente divertida é que fui, graças a Deus, socorrida por um casal que passava em um carro da época chamado Brasília e ao tentarem me colocar na parte traseira minhas pernas não dobravam, pois estavam enrijecidas e assim me levram para o hospital. O problema foi no dia seguinte sair na rua e enfrentar os amigos que vivenciaram isso comigo, tinha muita vergonha, porque alguns me olhavam com olhar desconfiado e outros me tratavam como “coitadinha”.

Ninguém nunca pode ou deve ser tratado como “COITADO”, principalmente pelos pais com relação a este problema, que insisto em não caracterizar como uma doença, apesar de ser e crônica, tem como conviver bem se encontrando o medicamento correto, o que no meu caso não se acertava, por isso talvez elas vinham e iam tantas vezes.

Aos 18 anos encontro a suposta Paz, já morando de volta na minha terra natal, São Joaquim da Barra, e muito, muito inconformada com meu estilo de vida, porque aí fui “ empurrando com a barriga,” já que ninguém me forçava a nada porque tinha problemas de um suposto retardamento mental”, resolvi então não voltar mais ao meu médico de São Paulo-Capital, e já disposta a não continuar com o tratamento, me dei uma ultima chance, porque na verdade tinha medo, então fui procurar um médico de Ribeirão Preto que também atendia em São Joaquim da Barra 02 duas vezes por semana,o então meu AMIGO, PAI, IRMÃO, COLEGA, E MEDICO: DR. JOSÉ GERALDO SPECIALI. O seu nome dizia tudo Speciali=Especial.

Lembro-me com riquezas de detalhes porque chorava muito ao entrar na sua sala, como já se tornara uma constante em minha vida  tanto quando tinha consulta, ou sabia que tinha que fazer EEG e fui clara, mal o cumprimentei  fui logo dizendo:

-Dr. Speciali, o Sr. é minha ultima tentativa, caso não dê certo, não tomo mais remédio nenhum, quero viver e viver como uma pessoa NORMAL. 

Foi quando ele calmamente, como ainda é até hoje me disse:

-Lígia, quem disse que você não é normal? De onde tirou isso?...

Então respondi:

-A vida, os médicos e esta doença que não me deixa...

Chorei ainda mais contando toda minha história que relatei aqui acima e ele ouviu TUDO, e respondia com seus hã, hã, que lhe é de costume e só anotava, anotava, às vezes me interrompia quando não entendia a cronologia e eu falava e chorava e chorava e falava, contava, precisava desabafar, tanto que não permiti a ida de meus pais comigo e repetia sem parar:

- EU QUERO SER NORMAL E VOU SER, O SR. PODE APOSTAR NISSO EU GARANTO!

Depois de quase 1 hora e trinta minutos falando sem parar, ele me disse uma frase tão simples, e acredito que não era aquilo que ele queria dizer, mas foi a maneira que encontrou de me acalmar:

- Quando vamos resfriar nós não espirramos?..É exatamente isso que o cérebro faz através da crise convulsiva, ele nos avisa que algo está errado e precisa ser tratado. Vamos dizer simbolicamente que você tem uma GRIPE CEREBRAL, mas que provavelmente seu tratamento será bem maior.

Quase entrei em choque, afinal, quando poderia imaginar que um médico falaria isso para mim com a maior calma do mundo...parei de chorar...

Ele me perguntou sobre os medicamentos que estava usando, já que nesta época havia saído algumas coisas novas e o  Dr. Darcy tinha feito uma escala de 3 vezes ao dia e além de tudo tinha isso, era medicada o dia todo. Foi então que passou os medicamentos apenas para a hora que eu fosse dormir e me pediu um pouco de calma.

Entre os conselhos que me deu foram:

1-Caso eu quisesse, como já havia feito terapia, seria interessante voltar, não era obrigatório, mas iria auxiliar no tratamento.

2-Permitiu que eu voltasse a tomar coca-cola, chá, café, ir à piscina, desde que acompanhada com uma amiga ou irmã que soubesse do problema para me observar na hora de entrar na água.

3-Ensinou-me uma maneira carinhosa de contar para uma amiga, sem chocá-la e sem me sentir tão constrangida.

4-Disse que poderia praticar um pouco de esportes, mas não muito, porque o cansaço e  o stress físico não me faziam bem, já comida com bebidas não me lembro de ter dito algo a respeito.

5-Liberou-me um brinde no meu aniversário, por ser dia 31 de Dezembro, mas só o brinde.

Saí do seu consultório com a convicção que tinha uma Gripe e mais nada, e dali para frente começou minha grande luta de superação. Porque quem tem uma gripe, pode tudo e eu podia. Saí feliz, sorrindo. Andava pelas ruas de São Joaquim tendo a certeza que não era diferente de ninguém. O dia ganhou cor, o céu ficou azul e tudo voltou a sorrir dentro de mim e pela primeira vez nada tinha sido imposto, apenas conversado. Acho que minha primeira consulta durou 2 horas, mas em se tratando do Dr. Speciali isso é normal até hoje, lembrando que já faz 28 (vinte e oito ) anos que estamos nesta vida. Eu já o abandonei uma vez, mas ele nunca desistiu de mim e sempre me conheceu muito bem.( haverá continuação...)