quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Relato II

Tentativas



Eu parecia mais leve e realmente fiquei por alguns dias, talvez meses...
A vida parecia que tudo entrava em um lugar que nunca tinha visto, nos eixos... Não tinha mais crises, mas ainda não estava satisfeita, achava que eram muitos remédios, foi então que o Dr. Speciali fez um teste com medicamentos novos que estavam sendo lançados. Um chamado Depakene e Edhanol, mas que tinha uma composição melhor e não dava tanto sono como o Gardenal. Usei estes dois remédios por anos, mas o Depakene tinha um problema, eu não poderia engravidar por conta de uma possível deformação de feto, e se o quisesse teria que ser programado muito tempo antes, mas a combinação dos dois me fizeram muito bem, então aceitei.
Aos meus 25 anos, achamos que poderíamos fazer uma tentativa de retirada dos medicamentos, mas me foi explicado que seria longa e com muita calma, ou seja 3 (três) anos! Isso mesmo, ficaria 3 (três) anos para a retirada dos dois medicamentos, e se desse certo, já que as chances eram grandes, ficaria livre para sempre, então achei o tempo razoável por tudo que me foi dito. Fizemos a retirada do Edhanol, foram 18 meses cortando remédio e tomando sempre no mesmo horário. Depois veio o Depakene, e como não dava para dividi-lo em partes, passamos para o liquido e aí vieram os micos. Tinha que tomar uma quantidade exata de mls e só colocado em uma seringa para dar certo. Eu tinha uma “malinha” que carregava para todos os lugares com tudo que precisava e de tempos em tempos ia diminuindo a dosagem. Entre várias situações, lembro de uma que fui para uma fazenda de um casal de amigos passar o carnaval e toda noite ia escondida à minha mochila, colocava a quantidade necessária, tomava e guardava rapidinho para ninguém ver, achava feio e constrangedor, mas valia a pena, afinal eu ia me livrar dos remédios e levaria uma vida normal e poderia até ter filhos.
Os três anos se passaram e eu retornei ao médico e ele solicitou um EEG para saber como tudo estava, apesar de estar fazendo acompanhamento de seis em seis meses durante estes anos. Nada acusava nos eletros, absolutamente nada, tudo corria como desejávamos e mais e mais eu ficava feliz e fazia tudo que era necessário. Depois deste último, o Dr. Specialli pediu para que eu aguardasse mais seis meses para podermos confirmar, e aí sim ele diria se tudo estava de acordo. Voltei no tempo certo toda alegre, fiz o EEG e dormi durante o procedimento, tive um relaxamento total, tendo de ser acordada na hora dos estímulos através de uma luz, igual às de boite. Lembro que o Camilo Borges, meu namorado da época, há uns 2 anos, me dava muita força para prosseguir com tudo, me acompanhando no retorno ao médico, afinal sabia de tudo. Entrei na sala sozinha , Dr. Specialli lia o Eletro e marcava, marcava e lia e nada dizia. Depois de alguns minutos de agonia veio a notícia e ele me disse calmamente:
-Lígia, eu sinto muito, no seu Eletro acusa que você pode ter uma crise a qualquer hora, está completamente diferente dos outros e temos que nos prevenir, por isso vou passar as receitas e você, por favor, tome logo que sair daqui os medicamentos para evitarmos mais uma crise. Eu não imaginava isso, mas infelizmente não deu certo.
Aquilo veio como se ele tivesse jogado uma bomba em mim...só chorava, mais nada, e explodi:
-Dr. ,eu fiz tudo corretamente, como não deu certo? ...Como?... Foram três anos, o Sr. tem noção do que passei nestes três anos?... Tem noção o quanto me enchi de esperança?...Quantas vezes coloquei a quantidade de medicamentos em uma seringa para não tomar a dosagem errada?...O Sr. tem noção de tudo isso?
Chorava sem parar, e continuo a chorar porque tenha sido, acredito o momento mais triste de recordar e me emociono e as lágrimas caem até hoje.
Ele dizia:
-Eu sinto muito, mas nós tentamos e isso foi bom, agora já sabemos que não teremos muito a que fazer, mas tem os medicamentos que não permitem que você tenha nada, se tomados direitinho. Estou tão surpreso quanto você.
Respondi:
-O Sr. lembra que com essa combinação de remédios não posso ser mãe?... O Sr. lembra que meu organismo não aceita quase nenhuma outra combinação de medicamentos, que os outros me fazem terem crises ou me deixam dopadas pela quantidade de miligramas?... O Sr. se lembra de tudo isso?
Ele disse:
-Lembro, e sinto muito, mas vou prescrever as receitas.
Eu sabia que ele não tinha nada com isso, mas precisava explodir com alguém , afinal foram anos tentando, e essa não foi a única tentativa, mas foi a mais marcante, as outras nem lembro, mas aconteceram, mesmo porque com 25 anos o meu sistema nervoso central estava amadurecido, e isso me favorecia. Sabia que seria esta a última tentativa. Nunca mais...
Dr. Specialli me deixou explodir e chorar, afinal chorar no consultório dele não era mais novidade, e todas as vezes ele brincava me chamando de chorona, mas foi frustrante para ambos. O semblante dele de decepção também foi enorme e ele não tinha como fazer diferente, tinha que me fazer retornar aos medicamentos novamente, mas não me lembro como foi, isso acho que deletei, mas ...
Sai do consultório em prantos, o Camilo não sabia o que fazer comigo, só pedia para eu me acalmar e que tudo iria dar certo, ele também não tinha o que fazer. Foi então que chegando em casa resolvi que iria para Ribeirão Preto, procurar um neurocirurgião e tentar uma cirurgia, para me livrar disso de vez. O Camilo e minha família, tentaram reverter, mas foi impossível, eu estava decidida e foi o que fiz.
O Camilo me acompanhava em tudo, desde a escolha do médico até as consultas e exames. Ele foi uma peça muito importante na minha vida nesta época e em outras, é uma pena que ele não esteja mais por aqui, mas este blog tem um pedacinho dele.
Marquei a consulta e fui. Sempre entrava sozinha, nunca permiti que ninguém me acompanhasse, era muito sofrido. Ao entrar deparei com um médico com uma cara de bravo, mais parecia um buldogue, achei que iria me morder. Contei a história toda e para variar chorei ao relatar tudo e disse que estava disposta a uma cirurgia. Ele ouviu tudo e me disse:
-Eu vou pedir um exame para constatar o que realmente você tem e só aí vou poder passar o diagnóstico. Quero que faça uma RESSONÂNCIA MAGNÉTICA.
Era um exame novo e ainda não era aceito em nenhum plano de saúde. E lá fui eu...
Fiz o exame na Santa Casa de Ribeirão Preto, que na época era o aparelho mais novo. Não tem muita diferença com a tomografia, mas é o famoso exame do TUBO. Ele era separado por sequências de minutos. Quando veio a de nove minutos, achei que iria morrer de tédio. Nunca imaginei que estes minutos parada sem fazer absolutamente nada, mexendo apenas os olhos, demorassem tanto. Foram minutos mais angustiantes da minha vida, parecia uma eternidade.
Encaminharam o exame ao médico, do qual não vou dizer o nome por não ter autorização, e marquei a consulta para saber a resposta do exame.
Entrei na sala cheia de esperanças e convicta que ao Dr. Speciali ou qualquer outro neurologista não voltaria, porque me livraria de tudo naquele momento. Foi então que ele disse, com a cara ainda brava:
-Lígia, o seu caso não é cirúrgico, muito pelo contrario, você tem 5 calcificações em pontos distintos e é impossível mexer nisso, teríamos que abrir tudo e o resultado seria desastroso, não é caso para mim, posso te encaminhar para um neurofisiologista do H.C. da minha inteira confiança para ele investigar mais, mas eu não posso fazer além disso.
Caí em prantos e aí veio a minha surpresa, aquele homem de cara brava, não sabia o que fazer comigo e dizia:
-Filha, não fique assim, o seu caso é simples, talvez só os medicamentos resolvam, não chore.
Pegou na minha mão e pediu para eu acalmar com o rosto mais terno que já vi. Se levantou e passou a mão na minha cabeça pedindo para eu não ficar daquela maneira que não me faria bem. Isso foi uma grande surpresa, e só me chamou de filha daí por diante.
Fez um relatório para me encaminhar ao médico do H.C. com a ressonância magnética.
Mais uma vez o coitado do Camilo entrou em ação me acalmando e me protegendo.
Fui então parar na Clínica Civil do H.C. e conhecer o novo médico que iria cuidar do meu problema e me dar respostas, as que eu queria, não as que precisava.
O médico escolhido, hoje é considerado o melhor do país, e lá fui eu... Estava acostumada com realidades, mas com um pouco de carinho, pelos dois profissionais anteriores por eles entenderem o quanto tudo aqui era doido na minha vida.
Entrei na sala com quase todos os EEG da minha vida, fiz aquelas coisas bem de leigo mesmo, levei uma caixa enorme e cheia de exames e junto a Tomografia antiga e a Ressonância recente. De cara ele me disse, depois de contar tudo novamente.
-Pegue todos estes EEG e jogue fora, não sevem mais para nada, para mim só vale a Ressonância, vou pedir uma tomografia nova, e farei um EEG aqui no H.C. da minha maneira, o resto pode ir para o lixo.
Fiquei assustada, mesmo porque ele estava pedindo para eu jogar a minha vida no lixo. Foi exatamente porque me senti agredida, violentada, como se a minha vida não houvesse a menor importância, foi quando veio a pior parte.Caí na besteira de perguntar para ele o que eu tinha realmente que não conseguia me livrar dos medicamentos, ele respondeu friamente:
-Você é epilética, tem Epilepsia, nunca te falaram?...Não tem como falar diferente, mas no seu caso é uma epilepsia controlada, eu tenho casos de pacientes que tem 13 crises por dia, a sua é tranqüila, com medicamentos controlamos.
Eu acho que naquele momento entrei em choque, e disse que nunca nenhum médico tinha dito esse nome para mim e que estava assustada, ele respondeu:
-Eu entendo que não é fácil, mas prefiro ser sincero com você, hoje está assustada, daqui uma semana estará acostumada com o nome, mas é isso, e quanto aos seus medicamentos vou modificar, não aceito, você é moça, mulher, deseja ter filhos e esta combinação te proíbe, por isso vou marcar o EEG e depois vamos mudar.
Estava tão passada que o fato de achar que poderia ser mãe me satisfez por alguns segundos, mas a sua frieza me assustava. Ele então disse o nome do remédio que eu iria passar a usar depois do eletro. Outro susto, então falei:
-Dr., eu já tentei este medicamento há anos atrás e não deu certo, tive crises e me faz muito mal, não vai dar certo, meu organismo não aceita, fico parecendo uma dopada.
Ele respondeu:
-Fique tranqüila, vai dar certo ele é o melhor que temos no mercado e marcou o EEG.
Realmente, fui dormir direito uma semana depois, ou por ter acostumado com o nome do meu “problema”, ou por cansaço mesmo. Sai de lá com o dia e hora certo para voltar e voltei.
Ao me chamarem para o eletro, parecia uma celebridade, todas as enfermeiras queriam conhecer a paciente do tal médico, e eu não tinha a noção da sua importância. Demorou quase 30 minutos só para colocarem os eletrodos na minha cabeça. Coloquei uma roupa do hospital e antes que ele chegasse, serviram até cafezinho com bolachinhas. Quando ele entrou na sala, verificou cada eletrodo, e começou o exame. Foi quase uma hora, não parava de sair folhas do computador, cansativo, horrível!
Uma semana depois começou a minha 2ª tortura, no eletro tinha dado o que já sabíamos, era apenas neurocisticercose e ele fez o que tinha dito, mudou os medicamentos. Minha vida virou um inferno, eu andava e parecia que o chão ia se abrir, não tinha visão lateral fixa, meu céu da boca vivia gelado, o que ele não acreditava, e não podia aumentar a dosagem porque não suportava, sentia-me mal, ficava muito deitada e tive uma crise convulsiva. Então ele resolveu mudar para um medicamento novo que acabara de ser lançado, mas com a composição semelhante a do outro, e eu pedindo para voltar ao medicamento antigo e nada...Comecei com este, melhorou um pouco, minha visão lateral já era fixa, mas me fazia mal, tinha enjôos, minha pupila parecia de dopado, não diminuia, vivia grande. Voltei a ter medo de tudo, e resumindo, em um ano tive 3 (três) crises convulsivas, e para "ajudar" meu braço direito passou a sair fora do lugar quando vinham as crises, e por ser o lado da crise ganhei uma luxação. Foi então que me rendi...
Liguei para o Dr. Specialli depois da 3ª crise em prantos, pedindo mil perdões por não ter acreditado nele e pedindo se podia voltar ele então disse:
-Calma, não fique assim, e claro que pode voltar, sempre, não precisa nem perguntar. Você foi tentar algo novo e isso é muito válido, mas temos que esperar uns dias porque acabou de ter a crise para fazermos um eletro, mas fique calma que vou marcar seu horário e estou te esperando no meu consultório para conversarmos bastante e deixe de bobeira, fique tranqüila, qualquer coisa que sentir me ligue.
Este é o Dr. José Geral Specialli, o melhor neurologista do mundo!